A força de uma mulher, a memória de um povo, a arte que resiste
Aos 76 anos, Catarina Ramos da Silva, conhecida como dona Catarina Guató, é símbolo vivo da resistência, da sabedoria ancestral e da força das mulheres indígenas do Pantanal. Integrante do povo Guató, tradicionalmente canoeiro, dona Catarina nasceu às margens do Rio Paraguai, território que ela conhece com os olhos e com as mãos.
Com sua arte feita a partir da fibra do aguapé, planta aquática nativa da região, ela transformou dor em força, dificuldade em arte e silêncio em reconhecimento. Criou os filhos com o artesanato, superou a violência doméstica, conquistou prêmios e títulos, e hoje é referência nacional na preservação da cultura pantaneira.
Neste mês de maio, sua história ganha ainda mais destaque com a participação no Festival América do Sul 2025, realizado em Corumbá, coração do Pantanal sul-mato-grossense, reunindo artistas de toda a América Latina. Dona Catarina é uma das expositoras do Pavilhão de Artesanato de Corumbá, levando seu trabalho ao grande público e representando com orgulho o povo Guató e as mulheres artesãs da região.
“Eu criei meus filhos com o artesanato. É uma forma de conseguir o sustento da família e também de sobreviver. O artesanato te ajuda em tudo. A gente faz ali mesmo, na beira do rio”, relata.
Desde 2022, dona Catarina é Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Foi premiada pelo Iphan com o projeto Sabedorias Compartilhadas, em que ficou em primeiro lugar e usou o valor do prêmio para reformar sua casa. Sua relação com o Pantanal não é apenas poética, é prática, cotidiana e profundamente enraizada.
Nascida na aldeia Uberaba, na Ilha Ínsua, fronteira entre Brasil e Bolívia, Catarina cresceu entre o plantio, a pesca e a caça ao lado da mãe. Mais tarde, aprendeu a arte do aguapé com a sogra, dona Josefina, e encontrou nela um caminho para se reerguer em meio à dor.
“Aprendi numa hora difícil. Eu não sabia trabalhar na cidade. Não existia Casa do Artesão ainda, era a Prosol que ensinava. Levava o material, secava, produzia… e, quando dava, já recebia, porque a gente precisava muito.”
Com método rigoroso e domínio técnico, prepara, corta, seca e trança a fibra com paciência e precisão. “Tudo é feito à mão. Gosto muito de fazer e vou continuar enquanto tiver força.”
Suas peças: bolsas, cintos, braceletes, saias e figurinos têm compradores fiéis e já foram destaque em diversas iniciativas culturais, como no Moinho Cultural.
“O aguapé é diferente de outras plantas. Ele não quebra. Só é difícil de secar”, explica.
A aldeia Guató de Catarina, também conhecida como Aldeia Uberaba, está localizada na Ilha Ínsua, na região noroeste de Corumbá, a cerca de 36 horas de barco da área urbana da cidade. Trata-se de uma das áreas mais isoladas do Brasil, na divisa entre Mato Grosso do Sul e Mato Grosso, na fronteira com a Bolívia. Catarina sonha em organizar uma feira de artesanato na aldeia, para que outros artesãos Guató também tenham a chance de mostrar e vender suas obras.
Em meio a uma vida de desafios e superação, dona Catarina reafirma sua conexão com o Pantanal e se emociona com as conquistas e o reconhecimento. No Festival América do Sul 2025, sua presença é mais do que simbólica: é essencial. Representa o encontro entre tradição e contemporaneidade, entre resistência e criação, entre a memória e o futuro. Sua trajetória justifica, por si só, esta homenagem porque ela é uma história viva.
“Eu só de pensar no que eu era e no que passei… e onde estou hoje… [chora]… É muito bom ser artesã indígena. A gente é como sucuri: quando agarra lá no fundo, não solta. Não sou rica, mas sou mais que rica. Tenho sabedoria e faço o que amo. Quando alguém diz: ‘que bolsa linda’, já ganhei o dia. Na hora que eu mais preciso, tem um dinheirinho lá pra mim… e é do artesanato. Para mim, é tudo”, finaliza a artesã.
FAS 2025
O Festival América do Sul 2025 é uma realização do Governo do Estado de Mato Grosso do Sul, por meio da Secretaria de Estado de Turismo, Esporte e Cultura (Setesc) e da Fundação de Cultura. O evento celebra a integração entre os povos latino-americanos com arte, cultura, tradição e diversidade, tendo como cenário o patrimônio histórico e natural de Corumbá, no coração do Pantanal. De 15 a 18 de maio, artistas, mestres da cultura popular, pensadores e criadores se encontram em uma programação gratuita, que valoriza os saberes ancestrais, a economia criativa e o protagonismo dos povos originários, como o da artesã Guató dona Catarina, verdadeira guardiã da alma pantaneira.
Karina Lima, Ascom FAS 2025
Fotos: Leandro Benites/Ascom FAS 2025