Leitura que liberta: presos usam tempo ocioso do cárcere para ler livros e diminuir pena

  • Reportagens Especiais
  • Paulo de Camargo Fernandes
  • 27/maio/2019 6:00 am
  • Agência de Noticias do Governo de Mato Grosso do Sul

Recomendação do Conselho Nacional de Justiça permite redução de quatro dias de prisão para cada 30 dias de leitura

Campo Grande (MS) - “Perdi muitos anos da minha vida procurando atalhos que me fizeram regredir. Perdi muitos anos trancado aqui e o que eu penso para o futuro é fazer faculdade, estudar Administração. Quero tocar meu próprio negócio e consertar minha vida”. Com 23 anos de idade, cinco deles vividos dentro do Instituto Penal de Campo Grande (IPCG), Pedro* faz análises profundas sobre seu passado e suas chances de futuro. Todas passam pela Educação.

“Terminei o ensino médio aqui dentro e vi que a oportunidade de recomeçar é o estudo”, afirma. Pedro conheceu o projeto “Remição pela Leitura” enquanto cursava o ensino regular dentro na cadeia. Por recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 30 dias de leitura no cárcere reduzem quatro do tempo de prisão. “Já li cinco livros e quero ler mais. Quando vi o projeto me interessei por causa da remição e entrei na primeira turma. Peguei gosto pela leitura”, conta.

O rapaz que confessou nunca ter lido um exemplar enquanto estava em liberdade disse que aprendeu a apreciar a leitura por causa das obras de Aluísio de Azevedo e José de Alencar, “O Cortiço” e “Senhora”. “Fiquei admirado com a linguagem complexa do Século 19”, comenta. Para comprovar que absorveu a história de cada obra, ele tem que escrever uma resenha seguindo critérios técnicos estabelecidos pelo CNJ. O material é avaliado por uma comissão de professores.

No Instituto Penal de Campo Grande, 42 pessoas participam do projeto que troca livros por dias de pena

Em Mato Grosso do Sul, o projeto da “Remição pela Leitura” é utilizado em presídios da Agência Estadual de Administração do Sistema Penitenciário (Agepen) desde 2014. Em parceria com o Judiciário, começou pela vara criminal da comarca de Paranaíba e foi estendida para Aquidauana, Nova Andradina e Campo Grande. No mês passado, uma Portaria conjunta normatizou a expansão do programa para os juízos criminais de todas as comarcas sul-mato-grossenses.

“Hoje já temos 12 municípios que estão com esse projeto. De 2017 para 2018, tivemos 276 pessoas contempladas pela ‘Remição pela Leitura’. São pessoas que receberam a remição, com aprovação das resenhas”, explica a chefe da Divisão de Assistência Educacional da Agepen, Rita de Cássia. O trabalho é feito em conjunto com a Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Professores e alunos dos cursos de Pedagogia e Direito trabalham com a leitura dos detentos.

Para Rita de Cássia, o projeto funciona como trampolim para o preso conquistar uma segunda chance no convívio em sociedade. “É uma via de mão dupla. Ao mesmo tempo em que ele adquire conhecimento e cresce como indivíduo, ele diminui o tempo aqui dentro da prisão”, avalia. “A leitura traz reflexão, mudança de comportamento, potencializa o desenvolvimento da criatividade e melhora a escrita, a fala e a expressão. Ainda é oportunidade para sair da realidade”, destaca a profissional.

Rita de Cássia, chefe da Divisão de Assistência Educacional da Agepen

Lucas* concorda quando o assunto é reflexão. “O primeiro livro que li foi ‘Mãos ao alto! Passa o boné’, de autoria da Ariadne Cantu, que é procuradora de Justiça daqui. E esse livro fala basicamente da história de todos nós. Pela dificuldade da vida da personagem, de violência e miséria, ela preferiu entrar na vida do crime achando que teria uma melhora. Mas ela se iludiu, acabou presa”, conta o homem de 38 anos, que participa do projeto desde março deste ano.

Pintor de profissão, Lucas é mais um que entrou no projeto para diminuir os dias de detenção e acabou criando o hábito da leitura. “Tenho um certo arrependimento, pois minha filha sempre pediu para eu ler para ela e eu nunca tinha tempo. Sempre dizia que estava cansado do serviço. Dou graças que ela ainda é pequena e eu tenho tempo. Posso sair [da prisão] esse ano”, revela o homem ao dizer que sua maior vontade é voltar para a família e a filha de 9 anos.

Miguel Barthiman, agente penitenciário do IPCG

Todo o trabalho do projeto é acompanhado por uma comissão formada pela Agepen e UFMS. Quem participa tem a oportunidade de remir 48 dias de pena por ano - o equivalente a um livro por mês durante 12 meses. “Fazemos o trabalho de roda de leitura marcado por dois encontros no mês. O primeiro é para escolha do livro. O segundo para aula de interpretação textual e as formas de se confeccionar uma resenha”, diz o agente penitenciário Miguel Barthiman, do IPCG.

Depois de concluído todo o processo da leitura, feito tanto na celas quanto nas bibliotecas, o preso produz a resenha sobre a obra escolhida. O material é avaliado, recebe nota de zero a 10 e é encaminhado para o Judiciário. O texto que tem nota superior a 6 é validado - garantindo, assim, a remição dos quatro dias de pena. “A participação dos presos é voluntária e o estilo preferido deles, que mais sai, é Romance e Ficção”, revela o agente responsável pelo setor pedagógico do IPCG.

*Os nomes foram alterados para preservar as identidades dos personagens

Texto: Bruno Chaves, Subsecretaria de Comunicação (Subcom)
Fotos: Saul Schramm

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